É o primeiro livro da autora publicado pela Oxalá Editora e lançado em Abril deste ano. Lisboeta que vive na Alemanha desde 1962, Fely (diminutivo de Felicidade) sempre escreveu, embora nunca tenha publicado nada do que antes houvera escrito. Aos setenta e dois anos não pára e já tem um novo projecto de livro.
Quando fala sobre as mulheres, diz não perceber porque é que os homens dominaram o mundo durante tantos séculos. Afinal, são as mulheres que tudo fazem: educam os filhos, tomam conta da casa e da família e, muitas, ainda trabalham tanto como os homens e, quando os homens morrem, têm de assumir todas as responsabilidades e tomar conta da família. E também foi assim no passado. E foi nesta luta, do dia-a-dia, que Fely viveu, arranjando tempo para escrever histórias de crianças, que contava às filhas e, mais tarde, passou a contar aos netos. Diz-nos que não é a única a escrever na família. Uma prima, um primo, uma das filhas escrevem e publicaram o que escreveram, e Fely seguiu a tradição familiar de contar histórias, pesquisar para contar como foi. Escreveu vários cadernos de folclore sobre as várias danças de cada província em Portugal. Na cidade onde vive tem participado em variadas iniciativas. Também foi uma das fundadoras do grupo do centro cultural português e do centro de folclore com o marido, já falecido, com Theo Ferrer de Mesquita, Manuel Campos e outros portugueses da área de Frankfurt. Lutou muito com outros pais portugueses para que as crianças luso-descendentes tivessem acesso a aulas de português, entre muitas outras iniciativas em que foi participando ao longo da sua vida na Alemanha. Afirma que as diferenças entre Portugal e a Alemanha «é como do dia para a noite», mas nunca se arrependeu de ter vindo para este país, até porque «sempre se sentiu profundamente europeia». Lembra quando estudava andava numa escola perto das Portas de Santo Antão, uma escola não religiosa, mas em que havia muita disciplina, como era típico daqueles tempos, e que isso lhe ficou para a vida como método de trabalho.
Fez o curso comercial no Ateneu, aprendeu francês e inglês, e realça que gostava da Alemanha e dos alemães muito antes de ter conhecido o país. Via os rapazinhos alemães subirem a calçada do Salitre e achava-os bonitos. Ela própria era conhecida pela inglesinha da Rua do Salitre por ter tez, olhos e cabelos claros. Veio para a Alemanha com 21 anos, casou com um português e tem duas filhas e vários netos. Todos eles falam português, e mesmo os genros adoram Portugal. E, foi com grande orgulho, que contou que os netos também falam português e, claro, que as filhas também. Toda a família lhe deu imenso apoio, quando começou a desenvolver a ideia de pesquisar sobre mulheres portuguesas de relevo na História de Portugal. Ideia essa que tomou contornos mais definidos quando viu numa livraria alemã, em alemão, um livro sobre trezentas mulheres importantes neste país. Quando ia de férias a Portugal, aproveitava para pesquisar documentos na Torre do Tombo e, assim, a obra foi progredindo ao longo de mais de dez anos, com interrupções, por vezes devido a acontecimentos menos felizes na sua vida. Mas Fely é uma pessoa positiva e vital. Reformou-se por volta dos sessenta anos de idade, ficando com mais tempo para prosseguir o que gosta de fazer. É uma leitora acérrima, mas ainda não se converteu aos formatos digitais, porque continua a gostar de sentir os livros na mão que «são como amigos», diz. Frequentadora assídua da que foi durante muitas décadas a única livraria portuguesa na Alemanha, cuidou o seu contacto pessoal com o antigo proprietário e a nova proprietária, e tem acompanhado o Portugal Post, desde a sua primeira edição. E diz não esquecer, que foi Mário Santos, antigo director do jornal e director da Oxalá Editora, que a incentivou e acarinhou este seu projecto de livro, feito com as dificuldades inerentes ao tema, principalmente no que concerne os primeiros séculos da nossa história, em que os registos são escassos, incompletos e, maioritariamente, sobre as poucas mulheres da nobreza que de algum modo se destacaram. É mais tarde, que aparecem as figuras populares femininas, sem antecedentes nobres, especialmente a partir de meados do século XIX e no século XX. Fely pensa que esta maior visibilidade das mulheres está ligada à introdução da escolaridade obrigatória no fim do séc. XIX, porque é a partir do momento em que as mulheres passam a ter acesso à cultura que começam também a exigir mais direitos.
O livro de Fely Rodrigues é um levantamento muito exaustivo e minucioso ao longo de um milénio de mulheres portuguesas que marcaram a História de Portugal. Um trabalho de muita persistência e dedicação, e talvez o primeiro trabalho deste género que abarca um milénio de História de Portugal. A autora decidiu limitar o número de mulheres a cento e cinquenta. Entre estas não esqueceu a história de Dona Gracia, Beatriz de Luna ou Gracia Nasi, a judia portuguesa, filha de judeus espanhóis, que com as suas frotas salvou centenas de judeus portugueses, e outros, das perseguições a que foram sujeitos e, mesmo, da morte certa às mãos dos seus carrascos e do Santo Tribunal da Inquisição. Foi uma senhora portuguesa conhecida um pouco por todo o mundo da época, como banqueira e comerciante, de Lisboa a Antuérpia, passando pelos portos italianos e acabando no Império Otomano, onde terminou os seus dias, na cidade de Istambul. Era banqueira do Imperador Otomano, Soleimão, o magnífico, que intercedeu junto do Papa pelos judeus perseguidos e os considerou bem-vindos no seu Império.
A autora cita Fernando Pessoa e diz que «tudo vale a pena, quando a alma não é pequena». Talvez seja por isso que, actualmente, está a pesquisar para o seu novo projecto de livro.
Cristina Dangerfield
Portugal Post, Outubro 2018